Confesso que nas minhas aulas na UDESC sempre argumentei que no Brasil a implantação do regime republicano teve muito mais impacto social e simbólico do que a independência política. A República significou a salutar extinção da monarquia e a instituição de uma arquitetura política moderna, que contemplou o federalismo e a laicização do Estado, devendo ser articulada com o término da escravidão. Mesmo mantendo estruturas sociais de longa duração, a Independência do Brasil pôs fim à nossa condição colonial, uma ruptura que deve ser vista em perspectiva euro-americana.
Não me animei com a comemoração oficial do bicentenário da independência do Brasil porque o Governo Federal insistiu na centralidade de D. Pedro I, tendo como evento-chave a exposição “Um coração ardoroso: vida e legado de D. Pedro I” no Palácio do Itamarati. Para tanto, articulou o translado do coração do nosso primeiro imperador conservado em formol na igreja Nossa Senhora da Lapa do Porto, sendo recebido pelo chefe do executivo com honrarias militares e ficou exposto para visitação pública em alguns dias no fim de agosto e no início de setembro. Trata-se de uma iniciativa no mínimo bizarra, que associa o processo de emancipação política do Brasil a um indivíduo e, claro, ao seu grito em Ipiranga, região da futura Província de São Paulo, representado no quadro “Independência ou Morte!”, de Pedro Américo.
Nesta direção, concordo com o jornalista Oscar Pilagallo quando anota que “a iconografia da Independência do Brasil contribui para fixar a interpretação de que a emancipação política do país teria sido pacífica, fruto do gesto de um príncipe europeu e centrada em único evento, o tal ‘brado retumbante’ do Sete de Setembro ao qual se refere o Hino Nacional”. Comentando o livro “O sequestro da independência”, ele observa que o quadro de Pedro Américo, mais conhecido por “O Grito da Independência”, foi encomendado por D. Pedro II e produzido no final do período imperial, fazendo uma representação idealizada do processo de emancipação, que muito ajudou a construir o mito nacional do Sete de Setembro. Trata-se de um “documento-monumento” –na acepção conferida por Le Goff – e plasmado pela política do Segundo Reinado com o propósito de rememorar o gesto considerado decisivo do nosso homem da independência, que deve ser desconstruído pelo nosso olhar historiográfico.
De outra parte, é preciso ir além de D. Pedro I, procurando dar visibilidade à conjuntura revolucionária da Independência do Brasil e a outros agentes políticos. Assim, o jornalista Naief Haddad assevera que “diferentemente do que os leitores de certa idade aprenderam na escola, a emancipação envolveu de forma efetiva centros além de Rio de Janeiro e Lisboa, transcorreu com violência em muitas situações, contou com a participação de mulheres e de negros e ganhou corpo em meio a uma economia diversificada. Em uma mirada conjuntural – no sentido braudeliano – fariam parte do “ciclo revolucionário da Independência” a Conjuração Baiana de 1798, a Revolução Pernambucana de 1817, bem como a proclamação da Independência da Bahia em 2 de julho de 1823.
A participação das mulheres no processo de Independência do Brasil vem tendo visibilidade nos estudos históricos com destaque para Maria Leopoldina e Maria Quitéria. A primeira, arquiduquesa do Império dos Habsburgo e esposa de D. Pedro I, tinha interesse por botânica e teve papel ativo na política da América Portuguesa. No artigo intitulado “A mulher que emancipou o Brasil”, a jornalista Sylvia Colombo confere protagonismo à primeira imperatriz do nosso país, afirmando: “junto com José Bonifácio, Leopoldina reuniu o Conselho de Estado no dia 2 de setembro e assinou o decreto que se declara o Brasil separado de Portugal. O próximo passo foi enviar uma carta a Pedro estimulando-o a proclamar a Independência. A mensagem chegou ao príncipe quando ele se aproximava de São Paulo. Ocorreu, então, o conhecido e simbólico Grito do Ipiranga – a decisão, vale ressaltar, já havia sido tomada”. De modo singular, no Recôncavo Baiano, Maria Quitéria se vestiu com roupas masculinas para participar de lutas militares para defender a nossa separação de Portugal.
Neste ano do bicentenário da Independência do Brasil, portanto, é preciso ir além do Grito do Ipiranga representado pelo quadro de Pedro Américo e compreender o processo multifacetado e tenso da nossa emancipação política, bem como seus diferentes agentes sociais, particularmente as mulheres.