Um dos legados do chamado Movimento da Escola Nova, na virada do século XIX para o século XX, sobretudo de um dos seus maiores expoentes, John Dewey, é o deslocamento da função social da educação do futuro para o presente. A proposição de formar cidadãos aptos a participar ativamente de uma sociedade democrática e do mundo do trabalho passou a ser um imperativo da educação escolar, daí a necessidade de uma pedagogia ativa e progressiva, que fizesse da escola um microcosmo da sociedade e propiciasse o exercício pleno da liberdade. O objetivo não era formar indivíduos para um futuro utópico, mas para o aqui e o agora.
Foi nessa chave que foram desenvolvidas as hoje tão faladas metodologias ativas. Elas nasceram para garantir a eficácia do processo educativo. Alguns de seus idealizadores defendiam também a existência de escolas que deveriam ser espaços para o desenvolvimento dessas experiências, que genericamente podiam ser chamadas de escolas laboratório ou escolas experimentais. Desde então, o campo das políticas educacionais de diversos países encampou, com maior ou menor intensidade, o desenvolvimento dessas escolas, que deveriam servir de ensaio para um processo de renovação em escalas mais ampliadas.
Essa síntese, um tanto generalista, serve para situar a criação dos Ginásios Vocacionas do estado de São Paulo, que figurou entre vários projetos experimentais em educação, desenvolvidos no Brasil, a partir de meados do século XX. Criado em 1961 para ser um projeto piloto de renovação da rede estadual de ensino, chegou a abarcar seis unidades, situadas nas cidades de Barretos, Batatais, Rio Claro, Americana, São Paulo e São Caetano. Conseguiu desenvolver um currículo extremamente inovador para o período, incorporando, indubitavelmente, elementos que ainda hoje custam estar presentes na escola pública brasileira: interdisciplinaridade, estudo do meio, processo de avaliação ao longo dos anos letivos, formação contínua do professor, trabalho em equipe, vínculo entre escola e comunidade, entre outros.
Após o golpe militar ocorrido em 1964, as escolas passaram a ser rotuladas, assim como outras instituições, como subversivas e comunistas. Em 12 de dezembro de 1969, foram simultaneamente invadidas pelas forças de repressão e vários professores foram detidos. Em 1970, formalmente fechadas e incorporadas à rede convencional de ensino.
Dois curtas-metragens recentemente lançados ajudam a contar essa história. Ambos conquistaram os dois primeiros lugares no I Concurso de Audiovisuais da Sociedade Brasileira de História da Educação ( https://sbhe.org.br/ ) e lançam luz sobre uma fase da existência das escolas ainda não suficientemente estudada: o período pós-1967, quando, já sob o recrudescimento da ditadura civil-militar, lutavam para se afirmar. Embora notoriamente reconhecidas como escolas públicas de qualidade, eram acusadas de ser instituições elitizadas, que supostamente atendiam poucos alunos, em sua maioria oriundos de classes sociais mais abastadas e em pouca quantidade. Usando essa justificativa, a Secretaria Estadual da Educação passou a dificultar a contratação de professores e atrasar os pagamentos de funcionários.
Nesse cenário, a equipe gestora das escolas, coordenada pela Profa. Maria Nilde Mascellani, dá um passo arrojado: a criação do ensino ginasial noturno, que seria equivalente ao atual Ensino Fundamental II. A iniciativa representou um movimento no sentido de ampliação e democratização das escolas, contemplando trabalhadores que não podiam estudar durante o dia. Isso implicou no desenvolvimento de um currículo específico para o novo público a ser atendido e uma adaptação do espaço físico e da gestão das escolas, processo que mobilizou pais, alunos e professores. Esse é o tema abordado no primeiro vídeo premiado, intitulado “Ginásios Vocacionais Noturnos: uma escola para o trabalho”, que congrega depoimentos de ex-professores, ex-alunos e pesquisadores da História da Educação. O material havia sido gravado em 2016 para um projeto de formação de professores da rede municipal de Santo André (SP), porém resultou em aproximadamente 6 horas de gravação que permaneciam inacessíveis para um público mais ampliado. Foi então editado para participar do concurso, que se restringiu a vídeos de até 7 minutos.
Outra característica desse mesmo período foi busca de alianças políticas que pudessem contribuir para superação das dificuldades impostas e garantir a permanência daquele sistema de ensino. É nesse momento que é criado, em 1968, o Ginásio Vocacional de São Caetano do Sul (SP), com apoio da prefeitura local. A nova unidade é criada também dentro da perspectiva de ampliar o número de alunos, flexibilizando o regime de tempo integral, porém sem prejuízo do currículo a ser desenvolvido. Essa é a temática do segundo vídeo premiado, que também apresenta depoimentos de ex-professores e ex-alunos. O curta-metragem é um desdobramento da tese de doutorado de Maria Aparecida de Carvalho, intitulada “Um breve tempo de inovação educacional: O Ginásio Estadual Vocacional de Vila Santa Maria, de São Caetano do Sul (1968-1970)” , que utilizou a metodologia da História Oral para investigar a curta existência dessa unidade de ensino.
Para além de contribuir com o entendimento do que foram efetivamente os Ginásios Vocacionais, os vídeos são um convite à reflexão acerca dos objetivos e dos rumos da política educacional em curso no nosso país!
Visite e prestigie o canal da Sociedade Brasileira de História da Educação no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=V-eeMf4Vkjw
https://www.youtube.com/watch?v=xlt_n2cr2zM
1. Mestre e Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pós-Doutorado no Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (EHPS/PUC-SP), onde atua como Professor Doutor. Investiga principalmente nos seguintes temas: História e Memória da Educação Brasileira, Educação e Ditadura Civil-Militar, Ensino Secundário, Escolas Experimentais e Ginásios Vocacionais. Integra a Linha de Pesquisa Educação Brasileira: produção, circulação e apropriação cultural e é um dos líderes do Grupo de Pesquisa História das Instituições e dos Intelectuais da Educação Brasileira.