Escrito por Norberto Dallabrida
O mês passado, no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina, foi defendida a dissertação de mestrado "Questão Religiosa Catarinense: disputas pelo poder de instruir (1843-1864)", de Thiago Cancelier Dias, sob a orientação do professor doutor João Klug. Trata-se de um trabalho consistente que procura compreender as lutas travadas entre frações das elites desterrenses, em meados do século XIX, pelo controle do ensino secundário.
A inspiração e a aporte teórico do trabalho em tela é a obra "Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade", de Norbert Elias e John Scotson (Editora Jorge Zahar, 2000). Na apresentação brasileira deste livro, Federico Neiburg esclarece que o termo "estabelecidos" refere-se a "um grupo que se auto-percebe e que é reconhecido como uma `boa sociedade`, mais poderosa e melhor, uma identidade social construída a partir de uma combinação singular de tradição, autoridade e influência", enquanto os outsiders não pertencem à chamada "boa sociedade", sendo constituídos por "um conjunto heterogêneo e difuso de pessoas unidas por laços sociais menos intensos do que aqueles que unem os established".
A dissertação de Thiago Cancelier Dias identifica, de forma clara e brilhante, esses dois grupos sociais na cidade de Nossa Senhora do Desterro do início da segunda metade dos oitocentos. Os "estabelecidos" na sua maioria eram descendentes de portugueses, pertenciam a famílias que haviam se estabelecido na Ilha de Santa Catarina desde meados do século XIX – como os Costa, Livramento e Luz – e geralmente eram ricos comerciantes e realizavam navegação de cabotagem. Por outro lado, entre os outsiders havia dois sub-grupos: um era formado na sua maioria por maçons e/ou liberais exaltados, que geralmente eram oriundos de outras províncias brasileiras; o outro era constituído por imigrantes alemães que haviam fugido da repressão após a mal sucedida Revolução de 1848 – os achtundvierziger. Enfim, os outsiders eram estrangeiros.
O conflito entre os "estabelecidos" e outsiders colocou-se de forma explícita quando da fundação do Colégio Liceu, em 1856, que tinha como professores Fritz Muller (naturalista e agnóstico), Richardo Becher (jurista e luterano) e Hermógenes de Souza Miranda (médico), entre outros. Esse colégio de ensino secundário enfatizava as Ciências Naturais, especialmente pela intervenção do professor Fritz Muller, sendo apoiado por João José Coutinho – então presidente da Província de Santa Catarina. Os "estabelecidos" produziram críticas ao chamado "Liceu dos alemães", argumentando que os professores desse colégio não professavam o catolicismo – religião oficial do Estado brasileiro – e não eram brasileiros. Em 1864, a partir de uma articulação política com o novo presidente provincial, eles lograram êxito junto à Assembléia Provincial, que determinou o fechamento do Colégio Liceu e a assinatura de um contrato com os padres jesuítas, que, no ano seguinte estabeleceram um colégio católico em Desterro. Esses fatos motivaram protestos dos professores do Colégio Liceu, que se desdobraram nos anos seguintes.
Ademais, a dissertação de mestrado "Questão Religiosa Catarinense" analisa a circularidade social da tensão entre "estabelecidos" e outsiders na cidade de Desterro, que, além do Colégio Liceu, espargiu-se nos partidos políticos, nos jornais, nas associações culturais. E ela estabelece também conexões deste conflito local em escala provincial, nacional e até internacional.